terça-feira, maio 25, 2010

O Símbolo do círculo (2)

... “Encontramos muitas mandalas na arte pictórica cristã, como a raríssima imagem da Virgem no centro de uma árvore circular, que é símbolo divino do evônimo. As mais comuns são as que representam Cristo cercado pelos quatro evangelistas. Têm sua origem nas antigas representações egípcias do deus Horo com seus quatro filhos.
Na arquitetura a mandala também ocupa um lugar relevante— embora às vezes passe despercebido. Constitui o plano básico das construções seculares e sagradas de quase todas as civilizações; figura no traçado das cidades antigas, medievais e mesmo modernas.
Um exemplo clássico aparece no relato de Plutarco sobre a fundação de Roma. De acordo com Plutarco, Rômulo mandou buscar arquitetos na Etrúria que lhe ensinaram costumes sacros e leis a respeito das cerimônias a serem observadas — do mesmo modo que nos "mistérios". Primeiro cavaram um buraco redondo — onde se ergue agora o Comitium, ou Congresso — e dentro dele jogaram oferendas simbólicas de frutos da terra. Depois cada homem tomou um pouco de terra do lugar onde nascera e jogou-a dentro da cova feita. A esta cova deu-se o nome de mundus (que também significava o cosmos). Ao seu redor Rômulo, com uma charrua puxada por um touro e uma vaca, traçou os limites da cidade em um círculo. Nos lugares planejados para as portas retirava-se a relha do arado e carregava-se a charrua. A cidade fundada sob esta cerimônia solene tinha forma circular.
No entanto, a velha e famosa descrição de Roma refere-se à urbs quadrata, a cidade quadrada. De acordo com uma teoria que tenta explicar esta contradição a palavra quadrata deve ser entendida como quadripartita, isto é, a cidade circular dividida em quatro partes por duas artérias principais que corriam de norte a sul e de leste a oeste. O ponto de interseção coincidia com o mundus mencionado por Plutarco.
De acordo com outra teoria , a contradição pode ser compreendida como um símbolo, isto é, como a representação visual do problema matematicamente insolúvel da quadratura do círculo, que tanto preocupava os gregos e que deveria ocupar um lugar tão significativo na alquimia. Estranhamente, também Plutarco, antes de descrever a cerimônia do traçado do círculo por Rômulo, refere-se a Roma como Roma quadrata. Para ele, Roma era, a um tempo, um círculo e um quadrado. Em cada uma destas teorias está sempre envolvida a mandala verdadeira, e isto condiz com a declaração de Plutarco de que a fundação da
cidade foi ensinada a Rômulo pelos etruscos, "como nos mistério s", como um rito secreto. Era mais do que uma simples forma exterior. Por sua planta em forma de mandala a cidade, com seus habitantes, é exaltada acima do domínio puramente temporal. E isto é ainda acentuado pelo fato de a cidade ter um centro, o mundus, que estabelece a sua relação com "outro" reino, a morada dos espíritos ancestrais. (O mundus era coberto com uma grande pedra, chamada a ''pedra da alma''. Em certas ocasiões a pedra era removida e, dizia-se, os espíritos dos mortos saíam da cova.)
Inúmeras cidades medievais foram edificadas sobre a planta -baixa de uma mandala e rodeadas por muralhas de forma aproximadamente circular. Nestas cidades como em Roma, as artérias principais dividiam-nas em "quartos" e levavam a quatro portões. A igreja ou a catedral erguia-se no ponto de interseção destas artérias. O modelo de inspiração destas cidades fora a Jerusalém Celeste (do Livro do Apocalipse), que tinha uma planta-baixa de formato quadrado e muralhas que comportavam três vezes quatro portões. Mas Jerusalém não tinha um templo no seu centro, já que este era a presença próxima de Deus. (A planta de uma cidade em forma de mandala não está fora de moda. Washington, D.C. é um exemplo atual.) A planta -baixa em forma de mandala nunca foi, tanto na arquitetura clássica quanto
na primitiva, ditada por considerações estéticas ou econômicas. Era a transformação da cidade
em uma imagem ordenada do cosmos, um lugar sagrado ligado pelo seu centro ao "outro"
mundo. E esta transformação estava conforme os sentimentos e necessidades vitais do homem religioso. Toda construção, religiosa ou secular, baseada no plano de uma mandala é uma projeção da imagem arquetípica do interior do inconsciente humano sobre o mundo exterior. A cidade, a fortaleza e o templo tornam-se símbolos da unidade psíquica e, assim, exercem influência específica sobre o ser humano que entra ou que vive naquele lugar. (É inútil salientar que mesmo na arquitetura a projeção do conteúdo psíquico é um processo puramente inconsciente. "Estas coisas não podem ser inventadas", escreveu o Dr. Jung, "devendo ressurgir de profundezas esquecidas para expressar as mais elevadas percepções da consciência e as mais sublimes intuições do espírito, unindo assim o cárater singular da consciência moderna com o passado milenar da humanidade.'')
O símbolo central da arte cristã não é a mandala, mas a cruz ou o crucifixo. Até a época carolíngia a forma usual era a cruz grega ou eqüilateral, e portanto a mandala estava indiretamente envolvida naquele desenho. Mas com o correr do tempo o centro deslocou-se para o alto até que a cruz tomou sua forma latina, com a estaca e o travessão, como se usa até agora. Esta evolução é importante porque corresponde à evolução interior da cristandade até uma época adiantada da Idade Média. Em termos mais simples, simboliza a tendência para deslocar da terra o centro do homem e sua fé e "elevá-lo" a uma esfera espiritual. Esta tendência surgiu do desejo de traduzir em ação as palavras de Cristo: "Meu reino não é deste mundo." A vida terrena, o mundo, o corpo eram, portanto, forças a serem vencidas. As esperanças do homem medieval estavam dirigidas para o além, pois só o paraíso lhe acenava com a promessa de uma realização total.
Esta busca alcançou seu clímax na Idade Média e no misticismo medieval. As esperanças do
além não encontraram expressão apenas na elevação do centro da cruz; podem ser percebidas
também na altura crescente das catedrais góticas, que parecem desafiar as leis da gravidade.
Seu projeto cruciforme é o da cruz latina alongada (apesar de os batistérios, com suas fontes
batismais ao centro, serem construídos sobre a planta da verdadeira mandala)”...
JUNG, Carl G. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1964.

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